FAZ HOJE 94 ANOS
LUAR
I
Toda a entrada de
estrada copada ao luar
Vai ter a Sonhar.
Mas é preciso chegar só
a entrar, e a fruir;
Nunca prosseguir.
Porque é só a entrada da
estrada que leva
Ao sonho que enleva.
A própria estrada só
leva acabada,
A não haver estrada.
II
Passo depressa
Por onde
A água luz começa...
Passei.
Ter passado me esconde
O que mal avistei.
Mas na alma me resta
Um vago
Sorrir tardio, aresta
De sonhar
Luz de não sei que
barco, pequeno, lago
Sob que luar.
III
Um riso na noite,
Riso de rapariga...
E a alma que não tem
onde se acoite
Viu até à liga
A vida, o sorriso, a
esperança...
Um riso na noite, mais
nada...
Um riso que, por si, é
criança,
Perna descalçada...
Um riso sem ninguém
Na noite onde o luar
Anda a procurar alguém
Sem o querer achar.
Um riso, colóquio,
entrevista,
O olhar com que o houve
Toca-me no ombro com
dedos
Que passam revista
Ao desejo... Assim
aprouve
À grande noite sem
medos...
Só um riso universal
De uma só boca
Invisível, essencial –
Um riso que me toca
Na cara, e a meu ouvido
Que segredo perdido?
IV
Deixa-os falar...
Da árvore pende
O balouço ao luar
Que ninguém pretende...
Deixa-os dizer...
Da alma alagada
Do luar vem ver
A alma sem nada—
Deixa-os sorrir Se
desejo, assim,
Sem te ver, sentir
Que sorris pr’a mim.
V
No parque para além do
muro
Que nesta noite é
incerto e escuro
Erro, mas sem o
conhecer,
Nem onde erro ver.
Que importa? Há muito
ali
Já ninguém vai ?... É
certo
Haver parque deserto
Estando a alma perto ?
FERNANDO PESSOA, 3 DE
FEVEREIRO DE 1920
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