Ama, canta-me. Eu
nada quero
Do mundo ouvir.
Sofro e, se penso, desespero.
Eu quero dormir.
Um sono em que a alma se esqueça,
Vazio embalar
Que o som do teu canto por fim desfaleça
E eu durma sem sonhar.
Como malmequeres, para mim em sorte,
Os meus sonhos desfolhei.
Tenho medo da vida, tenho medo à morte
Nunca tive o que amei.
Que a tua canção seja um nada, um afago,
Como o som longe do mar.
Eu quero dormir, Ama, as dores que trago
Só assim podem acabar.
Criança que vê os outros brincando
Sem brinquedo, e sem companhia...
Canta-me, Ama, vá-me o sono levando
Como uma melodia...
Nocturna esperança feneceu no outono,
Sussurro, secaram as águas...
Canta, e que o teu canto entre no meu sono
Como um ai sem mágoa.
FERNANDO PESSOA, 10 DE MARÇO DE 1918
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