NOCTURNO
Dorme, criança, dorme
Dorme que eu velarei;
Sozinho na noite enorme
Dum conto me lembrarei
Que depois, - dorme, criança, dorme -
Cantando te contarei.
Era um céu negro e imenso
E em baixo um mar sem fim
Um horror frio e suspenso
E uma voz descia dentro em mim
Sobre o mar, sobre o mar imenso
Chorando dizia assim:
"Cai lentamente o pranto,
Resvala para o chão,
E eu choro, mas fico no entanto
Na mesma solidão
Como o silêncio amargo do pranto -
No fundo do coração.
Sonhei que amaria
Um espírito do luar
Que morrendo eu encontraria
Ao pé de mim a sonhar
E agora choro noite e dia
Sobre as ondas deste mar.
Chamo qual se saudade
Homem do sempre-além
Mas apenas na soledade
Minha voz vai e vem.
E a minha alma sente funda saudade
De quando o sonho era um bem.
Andei, passei chorando
Chorando há muito vou
Cesse o ardor vago e brando
De quem muito sonhou
Mas só a si triste e chorando
A minha alma se encontrou.
Me sinto em mim um soluço
Pesadelo d'amargor
O abismo eterno em que me debruço
É a eternidade sem amor..."
E assim, com um soluço
Esvai-se a voz da dor.
Quando fores grande - dorme! -
Este conto contarei...
Por ora na noite enorme
Enquanto te embalarei
Ignora tudo, criança, dorme,
Dorme que eu velarei...
FERNANDO PESSOA, 27 DE JANEIRO DE 1909
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